Na sociedade, os conflitos humanos são muitas vezes colocados num mesmo âmbito, como se um fator único fosse o responsável por determinadas ações. No entanto, o que pouco se comenta é que situações vividas pelas pessoas num passado nem sempre tão distante, de fato, podem determinar reações no presente e, consequentemente, causar um impacto que é pouco discutido.
Transtornos mentais têm total ligação com o impacto do passado no presente das pessoas, sem que muitas percebam. A depressão, a ansiedade e a síndrome do pânico estão completamente ligadas a uma palavra já romantizada pela sociedade brasileira: gatilhos.
Imagem: Portal Futuro Livre
Um dos principais autores sobre memória no país: Renato Alves, autor de nove livros e fundador da Memory Academy, em conversa com o Portal Futuro Livre, explica que gatilhos mentais são estímulos externos, que ele exemplifica como imagem, som, sabor, aroma e afins.
"Estes gatilhos provocam nas pessoas estados emocionais, de desejo, medo, ansiedade. E não só no ser humano, mas também nos animais."
Renato diz que quando passa uma propaganda na TV/Internet/Rádio muito bem elaborada, ela desperta um desejo de compra e o consumidor acaba por não ter condições de adquirir aquele bem, ele entra (então) em um estado de ansiedade.
"A ansiedade, quando é frequente, mantida por um longo período, pode se tornar uma ansiedade crônica ao alterar a química do cérebro, migrando (por exemplo) para a síndrome do pânico."
O autor diz também que dependendo do tipo de transtorno mental, é possível que àqueles que sofrem podem estar mais susceptíveis aos gatilhos do que os que não possuem um transtorno mental.
"Quando a pessoa não tem um equilíbrio, uma clareza mental sobre a influência de um fator externo, ela pode desejar um objeto, uma sensação e etc."
É fato que para muitas pessoas, os gatilhos têm uma ligação imensa com estes transtornos mentais, já que a minoria da população não tem acesso ao tratamento adequado, e para muitas pessoas e situações, ainda não são consideradas nem doenças, afirma a psicóloga Adriana Severine.
Os gatilhos também são utilizados no mundo comercial. Neste ramo, explica os especialistas Fábio Lima e Fernanda Lupy, que de fato os gatilhos mais comuns (escassez e urgência) podem gerar ansiedade em algumas pessoas, mas não em uma escala que assuste.
Para os especialistas, existem outros gatilhos, como reciprocidade, e então não consideram o uso dos gatilhos mentais como uma prática empresarial ruim.
Em uma pesquisa realizada pelo Portal Futuro Livre, 50,9% dos entrevistados, não sabiam da associação de gatilhos com o mundo do marketing, já 49,1% sabiam.
Os especialistas explicam que o marketing está cada vez presente no dia a dia da população, e por isso quase metade dos entrevistados sabiam sobre a associação.
"A tendência é que nos próximos anos mais pessoas saibam da ligação de gatilhos mentais com o mundo das vendas."
Se tratando de gatilhos, as pessoas tendem a associar o termo as memórias. Adriana Severine explica que todas as pessoas sofrem com gatilhos, algumas com maior ou menor intensidade.
"A diversidade de atribuições que temos ajuda a gerar um mundo mais ansioso, e muito mais propenso aos gatilhos emocionais."
O que se vê no romantismo desta palavra, é o uso inapropriado para muitas ocasiões. "Hoje, popularizou-se a palavra gatilho, mas algumas vezes não são colocadas de forma correta. O lado positivo é que as pessoas começaram a perceber que existem situações que irão desencadear emoções, que muitas vezes não sabem lidar e podem causar sofrimento, através de uma angústia, medo, crises de pânico, ansiedade ou excesso de fúria."
O analista de TI Erick Bernardo, que aceitou contar sua história sem esconder sua identidade, ao longo da adolescência, sofreu agressões de seu pai.
Como ele mesmo diz, as agressões não eram sempre, mas mesmo assim ser agredido era péssimo, e gerou memórias que marcam até hoje. Quando ele vê alguém passando pelo que ele passou dos 12 aos 18 anos, logo surgem os gatilhos. Hoje, Erick tem 24 anos.
O especialista Renato Alves explica que, por conta da memória, que tem como um de seus componentes básicos o registro do que causa dor e sofrimento (com a finalidade de proteger), as pessoas que sofrem agressões ou presenciam agressões de terceiros tendem a sofrer gatilhos.
"Muitas vezes as memórias ruins (gatilhos) surgem como alerta para que a pessoa não sofra a partir de uma determinada situação qie presenciou."
Entre as pessoas que sofreram agressões e foram entrevistadas pelo Portal Futuro Livre, 57,8% afirmaram que sofrem gatilhos ao verem alguém sendo agredido.
As memórias das agressões, em formato de gatilhos, não necessariamente atingem 42,2% das pessoas.
Erick relata que certa vez viu um homem que estava de saidinha da cadeia agredir uma menina no ônibus, e ao ver aquela cena, quase partiu para cima do agressor, mas dominou seus sentimentos. Erick conta que estava com sua esposa, na época namorada. "Se eu estivesse sozinho, talvez eu tivesse ido [atrás do agressor]."
"Eu penso que não adianta em nada agredir um agressor, isso não iria resolver nada para o agredido."
Ele define os gatilhos como tudo aquilo que faz lembrar algo do passado. Erick recomenda que as pessoas tomem alguma atitude com base nos gatilhos sofridos. O jovem, no caso, aprendeu a dominar seus sentimentos e entendeu que o passado é uma roupa que não lhe cabe mais, mesmo que o passado ainda percorra seu pensamento quando uma agressão acontece na sua frente.
Erick detalha também que nem tinha forças físicas antigamente para ajudar alguém que sofresse pelo que ele sofria, diferente de hoje, mas com domínio próprio, a sua força física não precisa mais ser utilizada.
73,1% dos entrevistados disseram que já sofreram gatilhos, já 26,9% disseram que não.
Agressões sofridas também causam forte impacto nas relações de quem sofre com uma memória desbloqueada.
A história da Paciente A, que não identificaremos, tem base em um relacionamento abusivo.
"Sofri alguns gatilhos, mas dois foram os que mais marcaram e notei que realmente preciso de tratamento psicológico.", relatou a Paciente A antes de contar uma destas situações.
"[...] Meu ex era agressor e tinha mania de me puxar pelo braço. Um dia, andando pela rua com meu atual namorado, ele ia me desviar de um buraco e me pegou pelo braço. Naquele momento meu coração acelerou, veio todas as memórias ruins na cabeça e me deu uma crise de choro incontrolável."
O segundo relato dela é que ela não consegue vivenciar agressões verbais contra mulheres, e ao ver algo assim, logo lhe ataca a ansiedade, passando a ter crises.
Adriana Severine explica que é difícil ter dados reais em relação ao Brasil, mas faz um importante alerta sobre os homens, e diz que os mesmos foram criados para esconderem suas fragilidades, e por isso índices de suicídio entre homens é maior que entre as mulheres.
A maior parte das pessoas dispostas a participar da pesquisa realizada pelo Portal Futuro Livre, de fato, é feminina.
67,3% se identificam como mulher, 32,7% são homens.
A psicóloga conclui: "Mesmo em uma pesquisa anônima, acredito que os homens sintam receio de se abrir para falar abertamente sobre gatilhos emocionais. Normalmente, eles levam mais para o âmbito profissional e sexual."
Os entrevistados responderam se sofrem (ou acreditam) sofrer com ansiedade, depressão e/ou síndrome do pânico. O resultado demonstra que a maioria das pessoas diz ter transtornos mentais.
A psicóloga afirma que é difícil fazer um diagnóstico próprio de transtorno mental, pois há diversas nuances e graus, e por isso é indicado procurar um especialista.
"Um especialista efetuará um diagnóstico de fato sobre o que realmente a pessoa está sentindo."
55,8% dos entrevistados dizem sofrer com ansiedade, depressão e/ou síndrome do pânico; não sofrem atinge a marca de 44,2%.
Questionados se a sociedade sabe lidar com estes transtornos, 94,3% disseram que não. Para 5,7% dos entrevistados, a sociedade sabe lidar.
Questionados se eles mesmos sabem lidar, há quase um empate técnico:
50,9% dizem saber lidar com transtornos mentais, já 49,1% dizem não saber.
Para Renato Alves, é relativo afirmar que pessoas que têm transtornos mentais lidam melhor com quem tem depressão e ansiedade do que outros da sociedade.
Ele explica que se a pessoa sofreu com algum transtorno e lidou com ele, superando-o, ela é um exemplo e pode ser indicada para ajudar outras pessoas com o mesmo problema, mas Renato ressalva que a pessoa precisa possuir ferramentas terapêuticas necessárias para poder ajudar. "Caso contrário, será só uma troca de experiências que talvez até ajude."
Um fator predominante na sociedade moderna é a cobrança imposta aos jovens.
A psicóloga fala que o excesso de cobrança, associada a cobrança interna de ser o melhor, de se superar, se destacar, podem gerar situações de profundo estresse e pode desenvolver ansiedade.
De fato, quem tem entre 18 e 30 anos de idade, são cobrados em relação a vida profissional, acadêmica e sentimental.
Os entrevistados responderam sobre a faixa etária que fazem parte:
17 anos ou menos: 1,9%
Entre 18 e 24 anos: 34%;
Entre 25 e 30 anos: 35,8%;
Acima dos 31 anos: 28,3%.
O Portal Futuro Livre levou uma suposição para um advogado, no caso, envolvendo gatilhos.
Se uma pessoa tem traumas de infância por causa de agressões do pai, ao ver uma pessoa mais velha gritando, ela paralisa. Suponhamos que isso aconteça dentro do local de trabalho, obviamente é um prejuízo para a empresa, já que um funcionário está sem trabalhar. Se esta pessoa é demitida por justa causa, ela pode recorrer a justiça por causa do gatilho que a impediu de trabalhar?
O advogado diz que sim. "É uma situação em que a vítima deve buscar um profissional da área trabalhista para promover esta reclamação [trabalhista] para promover este respaldo, não somente os direitos, mas também a possibilidade de retorno ao trabalho e, até mesmo indenização. É um exemplo clássico em que se aplica uma indenização à vítima."
Cabe deixar claro que a opinião é com base numa suposição.
O advogado Lucas Braga esclarece que portadores de algum transtorno mental têm direitos especiais. Ele informa que além de colaboradores com transtornos mentais, pessoas que têm alguma necessidade especial estão amparadas pela Lei.
"São direitos que abrangem a esfera previdenciária e, também, esfera tributária. Há inúmeras Leis na esfera tributária que incentivam a aquisição de bens com redução fiscal."
O advogado fala que os direitos vão além da esfera trabalhista.
A saúde mental no trabalho também é assunto jurídico. Lucas Braga fala que tem sido claro o posicionamento dos tribunais, no sentido de promover melhores ambientes de trabalho. "A justiça tem sido severa nas penalidades, juntamente para visar o melhor ambiente e visando a saúde do colaborador."
"[Saúde mental] está sendo uma preocupação de todos do ordenamento jurídico."
A segurança pública, ou falta de, gerou conflitos em uma das pessoas entrevistadas pelo Portal Futuro Livre.
O Paciente B diz que sofreu 14 assaltos e hoje tem crises de ansiedade por conta disso.
Outros relatos também marcaram a série de entrevistas:
"Já fui agredida uma vez na rua. Toda vez que preciso resolver uma coisa sozinha na rua, sempre fico com medo de acontecer de novo"
- Paciente C
A mente do Paciente D lhe sabota:
"Sempre que estou em um carro e um outro veículo se aproxima, eu não consigo não pensar que os dois carros vão bater."
Os relatos seguem. Paciente E, sem entrar em detalhes, apenas disse que é sempre confrontado pelo passado, algo que não gosta de lembrar, e sinalizou inclusive que não se sentia bem com tais lembranças, mas na última vez que o passado tomou conta de sua mente: "eu explodi em crise e surtei!"
Nem todas as pessoas se sentiram bem para contarem suas histórias. Algumas se resumiram a dizer que ao ouvirem gritos, logo avançam em alguém, outras dizem que sofrem sempre ao se colocarem na frente de uma briga.
Mas, como dá para perceber, existem gatilhos bons. Muitos são utilizados no mundo comercial, outros estão nas lembranças.
A psicóloga explica: "Hoje virou moda se referir a uma lembrança como gatilho. Neste sentido, há gatilhos bons, pois disparam lembranças felizes. [...] Ao identificar gatilhos que não fazem bem, a terapia vai trazer maneiras de tratar emocionalmente tais situações, sem deixar que elas venham tomar conta de forma descontrolada e cause dor e desconforto."
Os gatilhos vêm de pequenos traumas que as pessoas sofrem, e acabaram por não terem tido a oportunidade de escavar as memórias para realmente entender como começaram. Adriana Severine diz que só assim é possível compreender, enfrentar, nomear e colocar cada gatilho em seu devido lugar.
As memórias ajudam, diariamente, na determinação de atitudes. Toda ação acaba por gerar uma reação e isso gera a sociedade ao longo da história da mesma.
Contudo, o impacto que fragmentos da vida causam no âmbito social, mostra que cada vez mais os pensamentos estão dominando e determinando ações, mas dependendo da reação, pode haver um certo controle.
O Paciente F disse que certa vez um homem entrou em uma casa, e agrediu uma senhora.
"Foi instantâneo! Fui para cima dele."
E desta maneira, com o domínio próprio que Erick alega agora ter, ou com a falta do mesmo, as pessoas estão sujeitas a vivenciaram um gatilho, já que não tem como controlar o que acontece na sociedade.
O enfrentamento ao lado ruim das memórias é fundamental, seja pela falta de recursos para comprar algo que viu ou pela falta tolerância gerada por empregadores.
A saúde mental segue sendo um complexo assunto que, aqui, comprova-se impactar a sociedade.